sábado, 4 de dezembro de 2010

Classificação Didático-histórica da Obra Kardequiana

UMA PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO DIDÁTICO-HISTÓRICA

DA CONTRUÇÃO DA OBRA KARDEQUIANA


Leopoldo Daré – 04 de novembro de 2010


Apresento uma proposta inicial de divisão e análise do trabalho de Kardec durante a construção e fundação do Espiritismo. Busquei basear-me, quase exclusivamente, nos próprios textos de Kardec. O texto abaixo é um "rascunho" inicial do trabalho, que precisará ser desenvolvido em mais detalhes, apresentando os dados que fundamentam a proposta. Publico o desenho inicial para pedir a colaboração dos interessados, com críticas e sugestões. Toda divisão didática é imperfeita, pois os fenômenos sociais são contínuos, e definir marcos divisores é uma artificialidade histórica que normalmente nos engana e reduz a complexidade dos movimentos de ideias. Entretanto, o esforço por criar esta divisão histórica tem o objetivo de evidenciar o processo evolutivo da construção do Espiritismo e dimensionar a importante influência da interação social na construção da obra kardequiana, identificando "as vozes reencarnadas" dos críticos e dos colaboradores que se manifestam nos textos.


1) Primeira Fase: Iniciação (1854-1857):

1a) Primeiros contatos – fase da aproximação (1853-1855): Caracterizada pela superação dos preconceitos (utilizar afirmativas de Rivail em seus textos pedagógicos). Inicia com as primeiras notícia sobre as mesas girantes, e termina com sua primeira participação em reunião mediúnica (efetivamente primeira reunião mediúnica, ou a primeira reunião que o convenceu?). Fonte principal: Obras Póstumas.


1b) O Aprendiz (1855-1857): Inicia com as primeiras reuniões mediúnicas sistemáticas até a publicação da primeira edição d'O Livro dos Espíritos. A adoção do pseudônimo Allan Kardec é o marco do "ritual de conversão". Nesta fase, a tarefa entregue a Kardec, pelos seus parceiros, é de identificar, organizar e divulgar os conhecimentos produzidos nas reuniões. A primeira edição d'O Livro dos Espíritos é a prova de demonstação da qualidade.


2) Segunda Fase: Construção Doutrinária – fase criativa (1857-1860/61):

Fase extremamente criativa, organiza-se o grupo de estudos da Sociedade Parisiense, formado pelos colaboradores que ficaram satisfeitos com o produto inicial materializado na primeira edição d'O Livro dos Espíritos. Kardec se fortalece no papel de intermediário criativo entre a produção mediúnica do grupo de estudos e a elaboração do corpo doutrinário. É a fase mais influente das "vozes reencarnadas" na obra kardequiana. Os textos são a manifestação de um trabalho coletivo que gravita em torno de Kardec e personifica-se através das lentes kardequianas.

Os conhecimentos elaborados na primeira fase são revisitados e tornam-se mais modernos, ajustando-se as contradições da primeira obra, e aproximando-se dos ideários socialistas de sua época (dados da comporação das duas primeiras edições do Livro dos Espíritos). Firma-se o vocabulário espírita em parceria com o grupo da Sociedade. São identificados os Espíritos basilares das obras espíritas (comparar as mudanças na lista dos Espírito no prolegomenos da primeira e segunda edição d'O Livro dos Espíritos, e as atas da Sociedade Parisiense publicadas na Revista Espírita).

Kardec reconhece, além de sua função de pesquisador, seu papel de teórico e educador. O pesquisador começa a perder espaço para o educador. Esta fase termina com a publicação da segunda edição d'O Livro dos Espiritos (na verdade, no âmbito de produção de conhecimento, extende-se até a publicação d'O Livro dos Médiuns, porém no âmbito de relações sociais, em 1860 inicia-se uma nova próxima fase: Dias de Luta)


3) Terceira Fase: Reconstrução Doutrinária - Dias de Luta (1860-1864) (utilizar as citações de Kardec na Revista Espirita)

Após sucesso da segunda edição d'O Livro dos Espíritos, livro que verdadeiramente fez sucesso de massa, Kardec se projeta como o maior nome francês do Espiritualismo Moderno, o qual passa a ser chamado de Espiritismo. Podemos dividir este períoco em dois movimentos de confronto:


3.a) Choques nas Relações Sociais Espíritas: Internamente, temos os conflitos dentro da Sociedade Parisiense (citação de artigos da Revista Espírita e de discursos em "Viagens Espíritas de 1862"). Este processo finaliza-se com o expurgo dos insatisfeitos, entre eles, médiuns fundamentais na Fase Criativa. Desta forma, parte importante dos fundadores do Espiritismo se distanciam da Sociedade Parisiense, como os méduns J.Roze, intermediário principal do Espírito de Verdade, e Honorine Huet, intermediário principal do Espirito São Luiz (apresentar a crítica de Kardec ao livro publicado por Roze no Catálogo Racional para Biblioteca Espírita, sobre Huet utilizar informações de livro não kardequiano). Como pano de fundo deste processo temos a discussão sobre a autoria dos livros de Kardec e a crítica a omissão dos nomes dos médiuns e dos Espíritos. A partir desta fase, os livros publicados abrem espaço para a divulgação dos autores espirituais, como no livro "Imitação do Evangelho", e na Revista Espírita aparecem os nomes dos médiuns (o conflito com a médium Japhet teria sido maior nestes anos?). Este expurgo centraliza, ainda mais, a liderança em Kardec, tornado-o não apenas a maior liderança espírita, mas o único fundador do Espiritismo. A nova geração que entra na Sociedade Parisiense, como o jovem Flammarion em 1861 com 18 anos, não conhecem a forma como "tudo começou" e serão reféns da sensação do "sempre foi assim", pensamento característico dos membros da segunda geração que incorpora-se a uma instituição criada anteriormente. Externamente à Sociedade Parisiense, antagonicamente e como possível alimentador do conflito interno, temos o fortalecimento da liderança de Kardec (Viagens espíritas de 1861 e 1862). Neste período temos o surgimento da Revista Espiritualista, do Espiritismo Racional, dos debates sobre o Espiritualimso anglo-americano, etc)


3.b) As Lutas Doutrinárias: Iniciam-se as críticas de literátos e da Igreja Católica (ver publicações da Revista Espírita). O caso mais significativo são as "Críticas de Émile Deschanel". Externamente, esta provocação cria a defesa intransigente dos princípios construídos na fase anterior. Internamente, no entanto, ocorre uma revisão doutrinária e ajustes na compreensão do espaço social do Espiritismo. O exemplo mais emblemático da reconstrução doutrinária, consequência das "Críticas de Émile Deschanel", é a modificação no conceito de Alma, Espírito e espírito (comparar as primeira e segunda edições de O Que é o Espiritismo). Esta mudança doutrinária, apesar de pequena, é característico da Fase de Lutas. Diferentemente dos trabalhos construídos na fase criativa, não baseia-se em comunicações mediúnicas, mas em soluções para proteger o Espíritismo das críticas externas. Nesta fase, as "vozes reencarnadas" fluem com maior limitação e maior controle do autor Kardec. Na Revista Espirita temos textos que comparam o Espirisimo com outras doutrinas. O artigo "União do Espiritismo e da Filosofia" na Revista Espírita de 1863, setembro e novembro, é marco da solução argumentativa tardia em resposta as "Críticas de Émile Deschanel". O fato do autor destes artigos não ser Kardec, sinaliza uma estratégia de proteção diferente. O choque com os críticos católicos encaminha e fortalece a posição dúbia kardequiana do confronto, resultando na publicação do livro "Imitação do Evangelho" (marco do fim desta fase de lutas). "Imitação do Evangelho" é um trabalho híbrido, com mensagens de médiuns do período criativo (pré 1861) e mensagens do período de lutas. Solidifica-se a finalidade educativa do Espiritismo, com a publicação do livro "Espiritismo em sua expressão mais simples". Temos a revisão sistemática das reeimpressões das Revistas Espíritas de 1858-1860, e da segunda edição d'O Que é o Espiritismo (não sei explicar o motivo, mas O Livro dos Espíritos não sofre revisões teóricas importantes, criando a contradição do conceito de Alma e Espírito com O Que é o Espiritismo)


4) Quarta Fase: Consolidação – Olhos para o Futuro (1864-1869)

Etapa de consolidação e confirmação da liderança, da centralização da produção de conhecimento, e da condução do movimento espírita em Kardec. Inicia-se com a publicação do texto "Autoridade da Doutrina Espírita" no livro "Imitação do Evangelho" e na Revista Espírita de abril (1864). Dividi-se em dois campos de intervenção:


4.a) Experiências Doutrinárias: Com a mão pesada do mestre, é publicado o livro "O Céu e o Inferno", trazendo o mais extenso trabalho de campo de Kardec, coletânea-síntese de um esforço de pesquisa mediúnica, atendendo a necessidade de comprovar a viabilidade do método da "universalidade dos ensinos dos Espiritos" defendido no Evangelho Segundo o Espiritismo. Ao mesmo tempo, com o objetivo de revisar as teorias católicas-cristãs de destino do Homem, coloca o Espiritismo em posição de ataque, e não de defesa. Esta obra guarda, portanto, relação com a Fase de Lutas. A necessidade de concluir seu projeto metodológico personalíssimo, base da argumentação a favor da cientificidade do Espiritismo e da demonstração da posição privilegiada de Kardec para protetor e desenvolver o Espiritismo. Esta obra representa a "consolidação" do modelo doutrinário e o auge do modelo metodológico.

O último livro, A Gênese, expande a atitude espírita de revisão das teorias religiosas em direção aos textos bíblicos. Consolida, definitivamente, a referência histórica do Espiritismo com a tradição judaica-cristã-católica. Ao mesmo tempo, A Gênese representa a nova fase doutrinária, uma fase com os "olhos voltados para o futuro". Totalmente diferente metodologicamente, não utiliza-se do critério de "universalidade dos ensinos dos Espíritos", e só foi possível devido a superação da Fase de Lutas. Em A Gênese, Kardec se reinventa, produzindo uma obra de hipóteses para serem testadas pelos conhecimentos científicos futuros, comprometendo-se com temas tipicamente pertencentes ao campo das ciências clássicas. Nesta obra, Kardec abre janelas para uma nova fase doutrinária para o Espiritismo, explorando as possibilidades de produzir-se hipótese temporárias através da mediunidade, sinaliza que a fase de identificação das leis naturais e dos princípios doutrinários havia se esgotado.


4.b) Organização Institucional: Apesar de ações destinadas a organizar o movimento espírita ocorrerem durante toda esta fase, seus principais trabalhos são apresentados nos últimos anos de sua vida e nos primeiros meses após sua desencarnação. Acompanhando a Revista Espírita percebe-se a tentativa de definir, de forma mais precisa e administrativa, o papel e responsabilidades da Sociedade Parisiense e dos grupos espíritas periféricos, perante um movimento espírita robusto (o projeto para o Espiritismo, Catálogo Racional para uma Biblioteca Espírita, etc).